Um debate urgente

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14 de julho de 2014

Um debate urgente

No início de junho, os Cuidados Paliativos foram o tema central de uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo, que reuniu nomes de peso no meio para discutir a sua expansão e a formalização de uma lei que disponha sobre o assunto.

Entre os profissionais que coordenaram o debate estava o geriatra Douglas Crispim, coordenador do Programa de Integralidade Domiciliar em Barueri (SP) e médico assistente do Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).

Com ele, a deputada estadual Sarah Munhoz (PC do B-SP), enfermeira de formação e autora do Projeto de Lei 599/2014, que prevê a criação de uma Rede de Cuidados Paliativos no Estado de São Paulo até 2017.

Embora os Cuidados Paliativos sejam um tema que ganha cada vez mais visibilidade, ainda há um longo caminho a percorrer – não apenas no que diz respeito ao projeto de lei, mas também em relação à mudança de cultura, formação de profissionais e disponibilidade de recursos. O site da ANCP se reuniu com Douglas Crispim e Sarah Munhoz para uma conversa franca e aberta sobre esses tópicos. Confira a entrevista a seguir.

Por que essa discussão se faz tão necessária?

Douglas Crispim: O atendimento em Cuidados Paliativos já é uma urgência de saúde pública no estado e no Brasil. As doenças cardiovasculares, que são as que mais matam no país, e as neoplasias só tendem a aumentar com o envelhecimento populacional e elas merecem essa atenção. Temos ainda uma grave população de pacientes com sequelas por doenças cerebrovasculares esquecidos pelo SUS. A neurologia faz a parte aguda do tratamento, mas depois o paciente fica perdido no sistema. Precisamos fazer algo urgentemente por essa população. O Programa de Saúde da Família (PSF) tenta cuidar deste tipo de paciente, mas não está devidamente preparado para tal. Esse paciente tem alta demanda de atendimento, vai para uma unidade de emergência e dificilmente terá alta. Na maioria das vezes, ele morre no hospital. Não pode voltar para casa porque falta cobertura de atendimento domiciliar e ambulatorial. Uniformizar o que é feito hoje, com a formação de profissionais que já atuam na área, é também um caminho a ser percorrido. Há muita gente fazendo Cuidados Paliativos, mas de forma desorganizada e sem padrão.

Sarah Munhoz: É uma questão de economia também. O custo do tratamento paliativo é menor do que o custo de manter uma pessoa numa UTI. É importante não exaurirmos recursos públicos em pacientes que já não serão beneficiados com tratamentos curativos. O brasileiro precisa aprender a lidar melhor com a morte. A nossa cultura é viver bem e muito, mas a realidade não é assim. Muita gente vive muito, mas mal. Existe um apego muito forte à vida, não permitimos que uma pessoa querida parta. Achamos que amar é esgotar todos os recursos, ainda que não obtenhamos os resultados esperados. É preciso mudar essa mentalidade, e com urgência.

Qual é a proposta do projeto de lei em andamento?

SM: Prevemos a criação de uma Rede de Cuidados Paliativos no estado de São Paulo. Até 2017, todos os municípios serão atendidos por essa rede. Os municípios com mais de 100 mil habitantes contarão com uma base de assistência em Cuidados Paliativos. As cidades menores terão serviços, mas não redes completas, pois o Programa Melhor em Casa se baseia no número de habitantes para criar suas equipes. Sendo assim, uma nova equipe de atendimento domiciliar só pode ser criada quando os habitantes são mais de 100 mil. Atualmente, no estado de São Paulo, os CP estão presentes em poucos serviços públicos, sendo a maioria na capital, com algumas iniciativas isoladas no interior, principalmente relacionadas a centros de tratamento ao câncer.

DC: Os Cuidados Paliativos têm várias fases. No início do tratamento, precisamos de profissionais que irão investir de maneira a modificar a doença. Conforme a doença progride, um especialista em Cuidados Paliativos será necessário para abordar esses aspectos mais avançados. No caso de um paciente hipertenso, por exemplo: se ele for bem controlado, vai passar bastante tempo no tratamento que busca modificar a doença. Se ele for mal controlado, terá infarto, insuficiência cardíaca, pode ter um AVC precocemente, vai abrir um leque para outras doenças.

Aí será necessária uma assistência em Cuidados Paliativos. Conforme uma doença crônica avança, tudo – a demanda por Cuidados Paliativos, a abordagem dos familiares envolvidos, a adaptação de todos ao novo estilo de vida e a proximidade da morte – irá se modificar e necessitará de atenção. É disso que o projeto de lei trata.

E em que etapa o projeto está?

DC: Ele precisa ser aprovado. Tivemos audiência pública dia 9 de junho e o texto passou por alguns ajustes. Uma vez aprovado, será criada comissão estadual de Cuidados Paliativos no estado, que irá implantar o projeto. Também haverá uma comissão gestora e reguladora e tudo terá que ter o aval dessa comissão.

Serão feitos diagnósticos situacionais, que é o diagnóstico da rede de atenção à saúde, incluindo hospitais, serviços de ambulatório e atenção domiciliar para detectar quantas pessoas no estado necessitam deste especialista.

Vários hospitais já estão participando dessa fase, pois precisamos saber quantos pacientes precisam de Cuidados Paliativos em hospitais, atendimento ambulatorial, domiciliar, PSF – tudo isso para que possamos ter uma visão geral da situação.

Também estamos trabalhando para elaborar um plano de formação de profissionais. O levantamento das necessidades dos pacientes nos permitirá dimensionar essas equipes, definir os tipos de insumos e a tecnologia a ser implementada junto com esse serviço. A médio e curto prazo devemos ter um cronograma para implantar os Cuidados Paliativos no estado.

SM: Sobre os trâmites do projeto, eu sei que a aprovação será demorada porque envolve muitos aspectos éticos. Essas questões exigem muita atenção por parte das comissões na Assembleia. Ele passará por todas as câmaras. Não é um projeto que envolve muito dinheiro, mas princípios éticos importantes.

Como é hoje o modelo de atendimento que temos disponível no Brasil?

DC: Hoje temos um modelo em que o Cuidado Paliativo é empregado para aqueles que estão em fase de morte apenas, mesmo assim em pouquíssimos locais do país. O que precisa ficar claro é que os Cuidados Paliativos não são uma alternativa de tratamento, mas parte complementar e vital de todo o tratamento do paciente.

E quando começamos a falar sobre isso? Desde o diagnóstico. Só que na primeira fase da doença, a demanda por Cuidados Paliativos é menor. Com o decorrer do tempo, essa necessidade aumenta, até a fase final da doença. Dizemos que é o início da termalidade da doença, não do paciente. A assistência em Cuidados Paliativos deve ser oferecida desde o início, ao contrário do que muitos especialistas pensam.

SM: Eu sempre lutei e luto pela humanização do SUS, assistência em saúde, humanização da formação dos profissionais da saúde. Humanizar é também aceitar e compreender quando é hora de partir. E isso falta no nosso modelo atual.

Na prática, como o serviço será oferecido?

DC: Há muitos aspectos. Do ponto de vista ambulatorial, os pacientes serão atendidos em ambulatórios especializados em Cuidados Paliativos. Serão oferecidas equipes de especialistas em paliativos com profissionais de diversas áreas, como psicologia, odontologia, medicina, serviço social, fisioterapia e fonoaudiologia.

Também vamos fazer um esforço especial para capacitar os profissionais de saúde da família, a fim de que sejam capazes de cuidar dos pacientes na fase mais precoce da doença. Isso para que, nesta fase de maior demanda, não seja necessário procurar um especialista, mas um generalista – mas esse profissional precisa ser bem capacitado para esse atendimento. Precisamos dar aos profissionais não especialistas noções básicas deste tipo de tratamento, principalmente nas fases em que as doenças não exigem tanto e as pessoas podem manter seu tratamento no posto. Isso  não significa que, no início, todo médico esteja apto a lidar com esse doente. Para que ele dê conta desse paciente, devemos treinar, capacitar – e esta responsabilidade é do projeto. Nem todas as pessoas com doenças incuráveis necessitam de especialista em paliativos, mas somente aquelas com demanda elevada de cuidados.

Nos hospitais teremos equipes que atenderão os pacientes internados e leitos de enfermaria para atender os casos que necessitem estar constantemente sendo cuidados por nossa equipe. Precisamos mudar a ideia negativa que se tem dos leitos de retaguarda para pacientes crônicos e tornar estes leitos próprios para receber, com estrutura adequada, os pacientes em tratamento paliativo, tornando-os mais modernos e confortáveis. O leito de retaguarda vem carregado de uma visão negativa – é como se o paciente que o ocupa estivesse tirando o direito de outra pessoa estar ali. A ideia não é extinguir o  leito de retaguarda e sim utilizar estes recursos de maneira inteligente e atender duas modalidades de doentes: os pacientes perfil hospice e os pacientes com doenças crônicas que necessitam internação prolongada. Os leitos de hospice são destinados a atender pessoas com doenças avançadas com prognóstico de vida mais curto. Queremos criar um novo conceito, utilizando portarias do Ministério da Saúde que já estão disponíveis e que permitem financiar esses leitos. Precisamos saber utilizá-las com mais responsabilidade. Esses leitos serão destinados para pessoas que não podem ficar no atendimento domiciliar e que precisarão de atenção mais detalhada.

Qual seria o grupo mínimo de profissionais necessários para o serviço? Dispor de todos não seria quase uma utopia?

DC: Nos hospitais, imaginamos uma equipe de interconsulta, dimensionada segundo o tamanho do hospital. As equipes de interconsulta avaliam os pacientes conforme solicitação dos profissionais que o acompanham e orientam condutas de acordo com a necessidade.

Nos casos em que o paciente tem elevada demanda específica de Cuidados Paliativos, eles serão atendidos nos leitos de enfermaria de Cuidados Paliativos dentro deste mesmo hospital. Os pacientes que estiverem estáveis poderão receber alta para atendimento ambulatorial ou domiciliar e os pacientes que estiverem em fase final de vida serão transferidos para leitos hospice. A ideia é que os hospitais tenham equipe multidisciplinar com várias categorias profissionais, mas o grupo mínimo deverá ser formado por médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social. Esses são essenciais, com formação especializada.

Também trabalharemos no esquema de hospitais-dia, onde o paciente pode receber medicação, passar por procedimentos, receber um atendimento pontual durante o dia e retornar para casa a noite. Isso é bem diferente de o paciente receber medicação em um hospital qualquer ou ir para um pronto-socorro qualquer num episódio de mal-estar. Se ele chegar em um serviço que não está preparado para Cuidados Paliativos, o paciente vai passar por procedimentos desnecessários, o médico não controla a sua dor porque não sabe ou não tem recursos para isso. Não existe um plano terapêutico para esse paciente e é nisso que a Rede de Cuidados Paliativos fará a diferença. Num hospital comum, o paciente entra e não sai mais. A família não sabe recebê-lo em casa, não foi treinada para isso e prefere mantê-lo no hospital. Com a segurança de que não haverá abandono, e a certeza de serviço disponível caso o paciente precise, as famílias se tornam mais disponíveis para receber o paciente em sua residência.

Em relação ao luto, como será o atendimento?

DC: É uma estrutura importante no processo. Haverá ambulatórios de luto.

Consideramos esse atendimento parte integrante dos Cuidados Paliativos e hoje praticamente não existe no Brasil. O que temos é ainda muito pequeno. Quem se preocupa com o que sobrou de uma família depois da morte do paciente? Temos uma porcentagem muito alta de pessoas que enfrentam um luto complicado, com consequências importantes nas suas vidas. Vamos oferecer atendimento em grupo ou individual.

O que o projeto de lei prevê sobre opioides para controle de dor?

SM: O paciente com dor crônica sofre de dores terríveis. Ele precisa dessa medicação e hoje sabemos da dificuldade que é ter acesso a ela. Precisamos criar mecanismos para o paciente ter em sua casa uma quantidade de medicamentos para que ele não passe dor. A partir do momento que o Cuidados Paliativos forem de fato e de direito, não teremos mais problemas com tais medicações.

DC: O acesso às medicações é essencial e é necessário que seja criado um plano que favoreça o uso delas. Não existe política para isso. Temos de facilitar a prescrição. Há um mito em relação aos opioides, mas existem muitas pessoas que precisam e que, por algum motivo, não estão fazendo uso deles – estão recebendo analgésicos que não aliviam as dores. Há muita gente sentindo dor nos hospitais e esta dor não está sendo tratada.

Como preparar mão de obra para esse atendimento, visto que esse é um ponto essencial?

DC: Vamos ter de investir também nisso. Há algumas boas iniciativas despontando na rede privada no sentido de formar profissionais em Cuidados Paliativos. Existem também algumas na rede pública e em universidades, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

Outro ponto essencial: a formação de gestores. É muito importante, para que eles tenham claro sobre os benefícios de ter esse serviço. Se o gestor não se convencer que os Cuidados Paliativos são importantes para o seu município, para a organização do sistema de saúde, nossa discussão fica caminhando em si. Nesse sentido, temos de reconhecer o esforço da ANCP, que tem feito um trabalho muito bom, assumindo a liderança de uma série de ações de cunho acadêmico, regulatório e na organização de congressos.

Vale lembrar ainda que é necessário fazer capacitação para gestores e secretários de saúde nos estados. São eles que vão montar o serviço, portanto eles devem estar preparados. Precisamos ainda envolver todas as faculdades públicas de saúde, não só as de medicina. Os Cuidados Paliativos são uma área em expansão, há muita gente interessada em trabalhar nela. Quando falamos no Movimento de Expansão, também estamos pensando em mostrar para esse público da saúde que essa é uma especialidade moderna, que está crescendo, tem muita possibilidade de trabalho e  literatura no Brasil e exterior disponível a respeito.

Existe ainda um trabalho de mudança cultural. Como vocês pretendem atingir a sociedade?

DC: Estamos pensando – e isso é uma ação da deputada Sarah Munhoz – em envolver artistas, fazer uma campanha de grande impacto na mídia, para sensibilizar a sociedade. Esse é um assunto que diz respeito a todos nós. Em nossa campanha para expansão dos Cuidados Paliativos, um dos objetivos é tirar a imagem pesada que o termo traz. Queremos que ele seja visto de forma mais suave.

Desde que estou aqui no Hospital das Clínicas, há 3 anos, já atendi  aproximadamente 800 pacientes e desses quase nenhum está vivo. Óbvio que toda despedida é triste, mas existe a boa despedida e a má despedida. Nosso objetivo é achar o sentido da vida, passar uma imagem de leveza para uma situação que todos nós vamos enfrentar, que é a morte. A população tem de achar que é importante que exista isso, porque todos nós podemos precisar desse atendimento também.

E vou mais longe: acho que a aprovação de uma lei consegue mudar uma cultura, sim. O estado, aprovando essa lei, já está mostrando que tem um pensamento mais moderno. E não estamos falando de vanguarda, pois os Cuidados Paliativos estão presentes em muitos países do mundo.

SM: A mudança é lenta. Estamos procurando meios de comunicação e publicidade que se aproximem o máximo possível da população para começar a discutir o assunto. As televisões, de modo geral, não querem levar a morte para o debate. Mas o que temos de entender é que essa situação é nova em nosso país. As pessoas ainda confundem Cuidados Paliativos com eutanásia e muitos meios de comunicação colaboram para essa confusão. Acho que a morte tem de ter o mesmo peso da vida. Nós, brasileiros, comemoramos demais a vida e choramos demais a morte.

O projeto é bastante amplo. Como vocês avaliam a sua viabilidade tanto em termos de custos e até mesmo desse respaldo social?

SM: Como dito antes, o custo de manter um paciente em Cuidados Paliativos é muito menor do que mantê-lo por tempo indeterminado numa internação da qual o fruto continua sendo a morte. A Rede que propomos criar será muito mais viável economicamente do que muitas estruturas hospitalares que já existem e que não cumprem a missão que deveriam cumprir.

DC: Trabalhamos com tecnologias de valor muito menor do que as que existem nos hospitais, que têm impacto muito grande. O custo maior será na tecnologia de formação de profissionais, hotelaria adequada e porcentagem mínima no investimento em saúde. Eu acredito que, para se montar um bom serviço de Cuidados Paliativos, a tecnologia científica e intelectual é o mais importante. A tecnologia mecanizada é o mínimo. Ainda se investe muito em áreas de altíssimo custo, com impacto menor na qualidade de vida das pessoas comparados ao impacto do atendimento em Cuidados Paliativos. Sem contar com o custo do sofrimento destas pessoas, físico, mental, espiritual. Imensurável.

Se levarmos em conta a população de pacientes que vamos atender – desde atenção básica, domiciliar, ambulatório, internação, internação específica para paliativos, pessoas internadas em outros hospitais –  verá que o investimento é baixo. O maior investimento será na estruturação da rede, o que em termos financeiros é muito  viável. Acho que a Lei é bem realista: não pedimos muito, pedimos coisas que dependem muito mais da parte intelectual. E o custo x benefício compensa muito. São Paulo sobe para um patamar bem alto implantando essa lei.

O modelo que o Projeto de Lei propõe criar segue algum específico?

DC: Temos vários modelos interessantes espalhados pelo mundo. Um que nos inspira é o do Canadá, que tem um sistema público e uma rede muito estruturada de Cuidados Paliativos. O serviço canadense é bem adaptado à realidade local, mas mais semelhante à nossa realidade de SUS do que os modelos europeus e americanos. Também vale lembrar que temos alguns bons modelos no Brasil.

O diferencial que imagino para o Brasil é podermos adaptar o PSF e trabalhar com unidades satélites, começando da atenção básica. De acordo com o número de pessoas atendidas pelo PSF, haveria uma unidade satélite de Cuidados Paliativos com especialistas, como já dito. A integração de todos os tipos de serviço em Cuidados Paliativos entre si e com a rede de serviços disponível no SUS é um desafio palpável e com resultados potenciais realistas. O Brasil já tem ótimas ferramentas que podem ser usadas para criar esta rede. O restante da ideia vem do nosso sonho de criar um modelo que possamos indicar para nossos familiares, amigos e que nós mesmos possamos utilizar sem medo.


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